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Página de opinião




Há fumo sem fogo


Uma das frases hoje mais repetidas é que "não há fumo sem fogo". Mas ela é também uma das infâmias mais frequentes, porque, em geral, só é invocada para difamar e cometer uma flagrante injustiça. Quando alguém diz que "não há fumo sem fogo", isso significa que é ele mesmo que está a acender o lume para fritar outrem. Por isso, uma das coisas mais necessárias nos tempos que correm é proclamar aquilo que a física e a química há muito sabem: na enorme variedade de gases, vapores e eflúvios, existem múltiplas situações de fumo sem qualquer combustão que o suporte.
Vivemos no tempo da imagem, da fama, da reputação. Mas, ao mesmo tempo, estamos numa época em que a informação, elemento determinante, é tratada com muita ligeireza e displicência. Não admira que os resultados sejam perigosos. A opinião e a figura são hoje omnipotentes, mas andam controladas por caprichos e preconceitos.
Na relação entre a aparência e a realidade, existe um estranho e perverso desequilíbrio. Quando a imagem é má, não temos quaisquer dúvidas quanto à sua veracidade, porque "não há fumo sem fogo". Mas, se o aspecto é bom, então, isso traz logo muitas suspeitas, porque "nem tudo o que luz é ouro", "o hábito não faz o monge", "no melhor pano cai a nódoa" e as "aparências iludem". Assim, a opinião comum está fortemente enviesada para o lado negativo.
Mas ainda há pior. É que, se se demonstra que afinal não havia mesmo fogo nenhum, a coisa ainda não está resolvida. Pode, nessa altura, accionar-se a segunda fase da difamação, invocando: "À mulher de César..." Como "não basta sê-lo, mas é preciso parecê-lo", fica claro que o fumo, mesmo sem fogo, chega para se condenar o inocente. Assim, em geral, um simples elemento de desconfiança basta para se desqualificar alguém.
A causa profunda desta situação vem da omnipotência da opinião pública, que constitui a tirania das democracias. Se juntarmos a isto uma comunicação social hiperactiva, com uma influência sem par na história, os resultados são terríveis.
Organiza-se a indústria do juízo precipitado, promove-se a institucionalização do cinismo, completa-se o paroxismo da murmuração e da mexeriquice.
O alvitre das massas, como os antigos bem sabiam, é um animal cego e caprichoso. Baseado em generalidades apressadas, enviesado para a desconfiança, o povo não teme cometer injustiças. Como vivemos num tempo que confundiu democracia com populismo, este elemento reina incontestado. Não admira que, apesar do justo orgulho nos direitos humanos e no sistema judicial, se cometam enormes e repetidas injustiças.
As certezas da opinião pública são muitas e fortes. Toda a gente sabe que anda meio mundo a enganar outro meio, pelo que existe uma predisposição para pensar sempre o pior.
É convicção comum que todos os ministros são corruptos, todos os patrões só pensam no lucro (mas, estranhamente, os trabalhadores nunca pensam no salário) e os funcionários são burocratas e preguiçosos. Todos os maridos querem enganar as mulheres (mas, como as mulheres são todas fiéis, não se sabe com quem eles o fazem) e todos os comerciantes aldrabam nos preços. Os advogados são todos mentirosos, os jornalistas cabotinos, os médicos exploradores. Nos filmes de aventuras, por exemplo, a presença de um deles tem sempre carga negativa.
Consequentemente, políticos, administradores, maridos, empresários e demais são culpados até se provar o contrário. Basta uma pequena suspeita para assegurar a condenação.
Só quando alguém pertence a um desses grupos é que sente bem na pele a injustiça do preconceito. Mas o mais engraçado é que, muitas vezes, nem assim se livra dele. É fácil conhecermos estadistas, gestores, médicos ou advogados que se julgam, cada um deles, ser os únicos sérios da sua classe. São todos facínoras, menos eles.
A consequência disto é que, apesar da explosão da comunicação e informação, estamos num tempo dominado por chavões e ideias feitas. Bastam meras suspeitas, alegações e insinuações para enlamear a dignidade de alguém. Ninguém acha necessário o trabalho de substanciar a acusação.
Tais conjecturas são suficientes, porque "não há fumo sem fogo". E, num tempo de reputação, a lama implica logo a destruição da carreira, sobretudo em posições de responsabilidade.
Hoje, a última coisa que interessa é saber se um ministro é bom ou mau, se actua com lisura ou corrupção.
Basta mostrar que tem amizades, experiência ou contactos no sector que tutela, para sair condenado sem remissão.
A consequência é que, como nos EUA, onde este processo já refinou, os governantes de sucesso tendem a ser personalidades postiças e artificiais, com opiniões mornas, situadas no centro de gravidade. Sem réstia de fuligem, mas também sem nenhum fogo.
O que está aqui em causa é a própria sobrevivência da democracia.
É cada vez mais necessário que todos, a começar pela Imprensa, se deixem de fumos e nuvens e se dediquem a apagar apenas aquilo que, de facto, esteja mesmo a arder.

naohaalmocosgratis@vizzavi.pt

João César das Neves, Diário de Notícias, Não há almoços grátis, 29.07.02





Segunda-Feira, 20 de Maio de 2002

Timor já é independente. Foi um processo equívoco que, ao longo de duas décadas, não deixou Portugal muito bem colocado.
Começámos por uma fuga cobarde que nada justificava, a bandeira canalhamente enrolada debaixo do sovaco a enxugar o suor do medo. Depois, fingimo-nos distraídos, a assobiar para o lado, enquanto os indonésios matavam timorenses e estes se matavam entre si.
De Portugal potência administrante, nem cheiro.
Finalmente, um pouco à pressa, com má consciência, demos um salto para o combóio da indignação que já corria mundo. No fundo, pouco mais fizemos do que manifestarmo-nos pelas ruas, com muito sentimentalismo lusitano, alguma indignação legítima e muito pouca eficácia.
Jacarta largou Timor porque tinha o Ocidente à perna e o amigo americano a aconselhar contenção. Caso contrário ainda lá estaria e, se calhar, não faria pior do que os que se perfilam já com a amizade de colonizadores disfarçados.

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Claro que, passado o drama, enterrados os mortos e tratados (sumariamente) os feridos, Portugal, e com ele o concerto das nações, respirou de alívio e correu a Timor para a festança.
Portámo-nos todos muito bem!
Infelizmente, o novo país deixa muito a desejar. Não tem comércio, não tem indústria, nem quaisquer outros meios visíveis de subsistência. Em comparação com o que a Indonésia lá fizera, andou para trás.
Rica, a comunidade internacional mandou para lá umas toneladas de coisas: comida para as primeiras impressões, alguns medicamentos e artefactos de todas as cores e feitios. Ao que consta, estes voltaram na bagagem da rapaziada das Nações Unidas, sob o pretexto de não haver por lá quem os soubesse utilizar. O que, entre outras coisas mais desagradáveis e indizíveis, parece indicar que os milhares de socorristas que invadiram Timor durante este período de transição não curaram de ensinar nada de útil àquela gente.
Claro que nada disto interessa às pessoas; nem às portuguesas nem às que por todo o mundo se interessaram pelo caso.
A malta só reage ao que as televisões lhe atiram para o regaço refastelado nos sofás. Ora, o "caso de Timor" já rendeu o que tinha a render e as câmaras andam já assestadas noutras novidades. Lá mais para a frente, pode ser que à míngua de sensacionalismo ou por obra e graça de um free-lancer em trânsito, se a levante a questão da penúria da que é hoje a mais nova das nações.
Isso ou um cataclismo que possa atulhar o pequeno ecrã de mortos e desalojados famintos.

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(...)

Walter Ventura, O Diabo, O Estado do Sítio, 28.05.02





Trabalhos & empregos
(...)
Nasce-se em trabalho de parto, não em emprego de parto.
O trabalho é uma energia, o emprego uma necessidade. O trabalho é uma prova, o emprego uma ova. O trabalho é um risco, o emprego um isco. Trabalho é alegria, emprego um carrego. Trabalho é um objectivo, emprego um digestivo.
Trabalho para fazer, emprego para estar.
No trabalho, procuro, no emprego, acho.
O melhor emprego é um tacho.
Diz-se "eu trabalho", com o verbo em acção, ali, bem agarrado a mim, intransitivo, em aberto mas com sentido. Mas quanto a emprego é "eu tenho um emprego", como complemento, distante do Eu, apresentado por artigo definido.
Trabalho é arte, emprego é parte.
O trabalho é uma luta. Faz-se o que se quer. No emprego, faz-se o que se pode.
Acusa-se "vão trabalhar" mas a ninguém passa pela cabeça o "vão empregar-se".
O "eu trabalho" sabe a esforço, o "tenho um emprego" cheira a manha.
"Empregados de todo o mundo, uni-vos" não tem sequer cabimento e muito menos uso.
Mas os tempos estão é para empregos.
A tensão do mercado e da vida arrasa os nervos a muita gente. Essa trama de estar sempre a criar ou a apurar produtos e serviços, a estudar, a cismar, de olho nos consumidores e clientes, atento aos concorrentes, de cara limpa e confiante, sem hesitar perante dificuldades e responsabilidades, arriscando o próprio dinheiro e o próprio pescoço, todo este trabalho cansa muito a quem se põe a pensar se não seria melhor um poiso, não uma trama mas uma mama. Um emprego! E começa a aparecer-lhes esse ideal, o da chamada função pública, nessas empresas e repartições, de Lisboa a Bruxelas,, onde, com o mínimo de jeito e submissão, não se cuida de arriscar a pele, onde todos os prejuízos são apagados e são mesmo a melhor coisa para muita gente sacar o seu. Isso, sim, é um bom emprego, óptimo para as sogras dizerem radiantes: "O meu genro tem um emprego muito bom!"; em vez de desabafarem furibundas: "Ah, a minha nora passa a vida no trabalho!"
O que estamos a assistir, em Portugal, é a um daqueles jogos das cadeiras em que se corre à volta delas, até pararmos e corremos para a nossa cadeira na esperança de não batermos com o cu no chão. Tivemos anos em que parecia predominar a corrida, o dinamismo, o investimento,, mas agora todos correm para as cadeiras disponíveis. Todos, não digo. Muitos, muitíssimos. Mesmo figuras de proa que encabeçaram a energia da livre concorrência, o esforço de pôr de pé novas empresas e actividades , de abanar as hostes, espevitar os gostos, riscar e arriscar horizontes, mesmo esses não desdenham hoje outros postos mais seguros, ainda que tenham que engolir a cara do seu passado recente.
É caso para dizer que Portugal está bem empregado.

Carlos Oliveira Santos, Diário de Notícias, DNA - Tu e Eu,20.10.01





Dar as mãos por nada
Aconteceu há dias um evento em Lisboa sob o lema "Dei as mãos por nada". Não conheço os pormenores da sua realização, nem sei sequer o que ia no espírito dos seus organizadores, dada a quase nula referência ao acontecimento na girândola das notícias, onde as coisas boas parecem não ter lugar. Como se trata de uma feliz e bela expressão, neste Ano Internacional do Voluntariado, e umas semanas depois da barbárie perpetrada no mundo, vale a pena reflectir um pouco sobre o seu conteúdo.
Dar as mãos por nada não significa alguém receber nada das mãos dos outros. Porque dar as mãos por nada é o oposto de dar as mãos para nada. Significa, em essência, dar sem pedir recibo de quitação. Significa, na profundeza das intenções, respeitar quem se ajuda. Desde logo, porque se erradica essa ideia tão autista de que o padrão para os outros tem que ser o nosso próprio padrão. A importância das coisas não é medida por uma qualquer fita métrica, e o nada ou pouco para mim pode ser o tudo ou o muito para uma outra pessoa. A vida de cada um é irrepetível. A percepção do mundo que nos rodeia é função do nosso próprio mundo interior. Um pobre e um rico, um velho e um jovem, um filósofo e um analfabeto, são muito diferentes não tanto naquilo que é visível aos nossos olhos, mas no invisível da sua existência. "O importante não é o que acontece, mas o que acontece em nós desse acontecer", escrevia com lucidez notável Vergílio Ferreira!
Dar as mãos quer dizer ajudar. Ajudar significa amar na plenitude do carácter e da compreensão do outro. Não é esta a verdadeira ponte entre a liberdade de ser e a responsabilidade de viver em comunidade?
Dar as mãos por nada exige uma anatomia completa do acto livre e amigo de ajudar: com o pensamento da nossa cabeça, com a alegria do nosso coração, com a energia do nosso sangue, com o afecto do nosso espírito.
Dar as mãos por nada não é necessariamente o mesmo que dar alguma coisa dos bolsos. Distribuir o que nos sobra ou o que nos atrapalha no egoísmo do nosso quotidiano, pode ser certamente louvável, mas não passa de uma administração das coisas. Esta generosidade com o que nos é supérfluo não se pode confundir nem com a versão laica da ajuda ao próximo, agora chamada de solidariedade, nem, muito menos, com o exercício da caridade cristã que Cristo nos legou para a cidade.
Dar as mãos por nada exige o esquecimento de nós próprios, na linguagem rigorosa de Santo Agostinho. É a plenitude da humanização pela qual se encontram o ter e o não ter, através do ser. Ou o amar e não ser amado, através da compreensão com respeito. Só assim o nada atinge o todo, e o nosso nada se transforma em tudo.

António Bagão Félix, O Diabo, A Palavra de...,09.10.01





Milhões de Timor não atraem responsáveis do Fisco

Por preencher está a vaga de futuro Director-Geral dos Impostos de Timor. As Nações Unidas deram prioridade a Portugal, mas até agora nenhum quadro superior da Administração Fiscal se mostrou disponível para se deslocar para aquele território.
A comissão de serviço tem a duração de um ano e não é nada mal remunerada. O director que se disponibilizar para ir para o território não perderá o seu ordenado actual, indo ainda somar-lhe o ordenado que ganhará em Timor-Leste... qualquer coisa como 1.800 contos por mês.
Para além do salário, o futuro Director-Geral dos Impostos de Timor tem ainda a opção de, terminada a comissão de serviço, ficar como assessor dos ministro das Finanças timorense.
Como se disse, a prioridade estabelecida pela decisão da ONU vai para um português, mas até agora o interesse em ir para aquele território tem sido nulo. Fala-se já que o cargo vai cair direitinho nas mãos (e nos bolsos) de um brasileiro.

???, O Diabo, 09.10.01





A guerra dos outros

Apesar da responsabilidade de Portugal no que aconteceu em Timor, quem está a pagar a factura da independência timorense é a comunidade internacional. Nós, por cá, comovemo-nos. Com o massacre de Santa Cruz, como com o massacre do World Trade Center.
Estamos bem! Ao que parece, a maioria dos portugueses - extraordinárias, estas sondagens de opinião! - não considera os atentados fundamentalistas um “acto de guerra”. Considera-os, com aquela distanciada frieza de análise que nos é tão própria, sentados em frente ao televisor a ver o horror a milhares de quilómetros de distância, como “actos de terrorismo”. Uma imagem pode não valer mil palavras, mas vale certamente mil emoções. Somos uns emotivos. Comovemo-nos imenso com a tragédia dos outros. Corre-nos a lágrima fácil. Solidarizamo-nos à brava. Damos para o peditório, vamos à missa, ao velório, ao cordão humano. Não mexemos é uma palha. Está-se bem! Já com Timor foi a mesma coisa. À “extraordinária” vaga de solidariedade dos portugueses para com o povo timorense, como foi amplamente auto-elogiado o movimento que nos trouxe para a rua de mãos dadas uns aos outros, sucedeu-se a quase total indiferença. Apesar da enorme responsabilidade de Portugal no que aconteceu em Timor, quem está a pagar a factura da independência timorense é a comunidade internacional. Nós, por cá, comovemo-nos. Com o massacre de Santa Cruz, como com o massacre do World Trade Center. O sangue faz-nos impressão. Damos roupa velha, oferecemos os bombeiros. Assobiamos para o lado. Discursamos, com um ar compungido, anunciando a nossa pobreza de recursos. Os ricos que paguem a crise. Não deixa de ser um espanto esta maneira tão nossa de nos colocarmos de fora. Desde que, há quase um século, Portugal participou na I Grande Guerra sem saber nem como nem porquê, que o portuguesinho valente se faz ainda mais pequenino, a ver se ninguém dá por ele. Durante a II Guerra íamos de joelhos a Fátima implorar a paz e de cócoras agradecer a mesma ao seráfico presidente do Conselho. Os americanos que se matassem para nos salvar do nazismo - ou do comunismo. Durante a guerra colonial éramos todos contra, mas íamos todos para lá porque éramos obrigados. Éramos todos contra a PIDE, mas ninguém se queria meter em aventuras. Como dizia o único filósofo genuinamente português, o grande Solnado, a nossa política sempre foi a do trabalho - dos outros. Nada de mais natural que consideremos não só prudente mas justo evitar comprometermo-nos com as coboiadas do texano Bush. Considerar o que aconteceu no World Trade Center e no Pentágono como um acto de guerra implicaria termos de escolher lados - mesmo que o lado fosse o de uma pusilânime neutralidade. Já classificar os atentados como terrorismo implica uma condenação moral - o terrorismo é sempre negativo - e a confortável atitude prática de considerar que isso é lá entre eles. Os atentados são contra a política dos americanos, da qual resultam a globalização, a miséria e o subdesenvolvimento e a destruição dos valores culturais dos povos sujeitos ao imperialismo ocidental. Questões políticas sobre as quais Portugal, aqui no seu cantinho, pouco pode fazer. Mas assumir que por detrás dos atentados estiveram razões políticas é assumir demasiado, por cegueira ou conveniência. Enquanto o terrorismo da ETA, aqui mesmo ao lado da porta, tem fundamentos políticos e sujeitos a negociação, com o fundamentalismo islâmico ou quaisquer outras formas de estupidez metafísica não há nada a negociar. O Governo espanhol poderia, por hipótese extrema, ceder a todas as exigências da ETA e acabar com o terrorismo. Idem com o IRA na Irlanda, ou com os palestinianos em Israel. Pelo contrário, com o fundamentalismo islâmico nada há a negociar. Bin Laden, ou quem cometeu os atentados, não quer sentar-se à mesa das negociações, não pretende discutir nem assinar acordos. A sua guerra não é a da continuação da política por outros meios, é a da eliminação da política por outros meios. É essa a nova guerra dos americanos. Dos americanos, julgamos nós

José Júdice, O Independente, Opinião, 21.09.01





E a bomba de Hiroxima?

Apareceram todos agora. Ao molho. A dissertar sobre a arrogância dos americanos. E a injustiça da sua política. No fundo, eles estavam a pedi-las.
Ao contrário do que se tem dito, o país não está cheio de “falcões” a rebentar de estratégias. Está cheio de idiotas - que, para cúmulo, nem sequer são úteis. Aparecem nas televisões. Babam-se todos os dias, nos jornais, escorrendo um profundo desprezo pelos que vêem o mundo a “preto e branco”. Eles são todos coloridos, como é óbvio. Não vão em simplificações. Basta lê-los para perceber a subtileza com que analisam a realidade. Ao contrário dos “belicistas” ou dos “estrategistas de meia-tigela”, eles exibem uma outra compreensão dos factos: há os maus que são ricos e capitalistas, e há os bons que são pobres e excluídos; de vez em quando, os maus apanham um susto, recebem um “sinal”; mas, como são ricos e capitalistas e, por conseguinte, maus, não aprendem nada com estas lições. Depois levam com os terroristas. A maioria, anda nisto há mais de 20 anos, consumida pelo esforço da reflexão e pelo erro das previsões. Em contrapartida, levam-se a sério - levam-se extraordinariamente a sério. A eles e às suas opiniões. Alguns são uma espécie de reserva da Nação, com o futuro encalhado num glorioso passado. Outros escrevem sobre “A revelação de mundo mudado”. E outros ainda sonham, coitados, com as aventuras da revolução. São tolerantes com o que pensam. E são contra a globalização - que acham que está na origem de tudo quanto há de mau ao cimo da terra. São adeptos da violência criativa. Da vitimização dos povos. Da ortodoxia reinante. Da problemática do sujeito. Gostam de falar da reinvenção da esquerda e da miséria do capitalismo. E gostam de fazer citações. Apareceram todos agora. Ao molho. A dissertar sobre a arrogância dos americanos. E a injustiça da sua política. No fundo, eles estavam a pedi-las. Se não fosse o bin Laden, seria outro patriota qualquer. Outro deserdado do mundo. Nenhum deles aprova o terrorismo. Mas compreendem-no. E sabem que as coisas também não são assim tão fáceis de classificar. Em última análise, um terrorista pode ser um libertador dos povos, um revolucionário convicto, um inimigo da opressão. É tudo tão relativo! Percebem o ódio aos Estados Unidos. Eles aliás também sentem esse ódio. Não gostam de países ricos. Os países ricos, de uma forma geral, são estúpidos. Transformam actores de segunda e “cowboys” de quarta categoria em presidentes da República. Votam em George W. Bush. O homem, como é óbvio, parece-lhes demasiado estúpido. Sempre que ele fala, ficam incomodados. Maldispostos. É desagradável. Muito mais desagradável do que tudo o que fazem os pobres dos “taliban”. Como é que eles não haviam de apedrejar mulheres? De enforcar homens sem fé? Ou de matar homossexuais? É tudo uma questão socioeconómica. Se não fosse o capitalismo, eles já viviam em democracia. Assim, sofrem a miséria de todos os excluídos. Mais preocupante é a reacção dos Estados Unidos. A Europa tem que impedir que eles levem a cabo os seus desejos primários de vingança. Não lhes dar carta branca. Explicar-lhes as coisas. Injectá-los com subtileza. Obrigá-los a mudar de política externa. Foram eles que acharam que podiam viver sozinhos. É para verem! E foram eles que se armaram em polícias do mundo. É para verem, mais uma vez! Por eles, os Estados Unidos estavam sempre a ver - para ver (lá está!) se aprendiam! Mas não é fácil. No fundo, no fundo, os americanos são demasiado primários. Gostam de “hamburgers” e de batatas fritas. Compram “T-shirts” com a bandeira. Apoiam o Bush. E são arrogantes. E escandalosamente ricos. Está bem, morreram mais de cinco mil pessoas. É chato. Mas não morreu já tanta gente no Ruanda? E em Angola? E os iraquianos? E a bomba de Hiroxima?

Constança Cunha e Sá, O Independente, Opinião, 21.09.01





Solidariedade(zinha)

Timor, como todas as coisas de difícil explicação, rapidamente se transformou de coisa em causa. E ainda mais rapidamente passou do estado mental (o 5º estado, a acrescentar aos quatro de Empédocles) ao da mais profunda indiferença. Foi mais uma das modas passageiras de que se alimentam algumas consciências bem-pensantes. De vez em quando, estes solidários militantes vão à caixinha e tiram mais uma causa "kleenex", à qual se assoam até estar gasta; depois, deitam-na fora e usam outra para limpar os pingos do choradinho que lhes vai na alma, por desfastio. É o coitadismo, a solidariedadezinha, na sua forma mais pueril e, por assim dizer, ranhosa. A eficácia pública da causa é, por regra, inversamente proporcional ao comportamento privado; isto é, simplificando: quanto mais alguém se diz "solidário" mais despreza o seu semelhante; quanto mais distante é o objecto da causa (Timor é um excelente exemplo), mais encarniçada é a militância; pela inversa, quanto mais próxima é a causa, mais rápida é a fuga, a deserção, a cobardia. A solidariedade é uma coisa que não serve para o amigo doente, o familiar falido, o transeunte atropelado, mas serve na perfeição para os timorenses massacrados a 16.000 km de distância. Digamos que enviar cobertores é bom, coitadinhos, fazer um donativo é óptimo, coitadinhos, mas visitar um doente nem por isso, que se lixe. É a lógica do Escuteiro que ajuda a velhinha a atravessar a rua, mesmo que a velhinha não queira; e se a velhinha se puser a refilar, até vai de rastos. E xiu, ora, ora.
Desaparecidos os "escuteiros" para outras e mais compensadoras paragens, agora que Timor já não é um assunto "bem", talvez seja bom aproveitar a aberta para ver claro e fazer realmente alguma coisa de útil. Ou seja, findo o PREC (processo de rebéubéu em curso), temos finalmente a oportunidade de compreender e avançar. Livres dos empecilhos caritativos e das grandiloquências balofas, podemos começar a fazer um trabalho sério, despoluído e despretensioso. E sem a carga implicitamente neocolonialista dos (ex) militantes da "causa" timorense, é agora mais fácil trabalhar, pura e simplesmente.
Responder ao que os timorenses nos pedirem, sem sermos nós a dizer-lhes aquilo de que necessitam. Colaborar sem impor modelos, civilizacionais, políticos, económicos ou existenciais. Integrar a sociedade timorense, com as suas idiossincrasias, apenas com simpatia e não com sobranceria. Respeitar, em suma.
Não está ainda determinada qual é a substância química segregada durante o processo de militância solidária, ou que tipo de recompensa (hormonal ou moral, pouco importa) obtêm os viciados em tal actividade. Infelizmente para os americanos, mas felizmente para os timorenses, existe agora uma nova "causa": depois do rotarismo, das quermesses e jantares de beneficência, dos mecenas e dos burgueses adeptos da pobreza, depois dos amanhãs que cantam e da sociedade sem exploradores e explorados, depois, por fim, dos "maus" sem rosto e dos "bons" que éramos nós, chegamos a isto: à falta de melhor coisa, arranja-se uma causa, a globalização, a poluição, o tigre da Malcata, os passarinhos que já não fazem os ninhos, save the wales, oh yes, e não esquecer as muito meritórias "lutas" contra os 25% de aumento nas portagens, contra a chatice d'Os Lusíadas nas escolas, pela qualidade do ensino, queremos aulas de educação sexual e passagens administrativas, ya, digo, já.
Acabou-se. Pelo menos por uns tempos, podemos respirar. A militância está muito entretida com as Twin Towers de New York, os "talibãs" e o Império do Mal. Como de costume, uns contra e outros a favor. Sempre assim foi e sempre assim será, provavelmente.
Toca a trabalhar enquanto eles se assoam a este guardanapo.

João Pedro Graça, Carcavelos, 17.09.01


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