Na retirada portuguesa de Díli, em Agosto de 1975,
Fernando Cavaterra, militar n.º 167 da Armada, foi deixado para
trás, no meio de uma guerra civil. Só 24 anos depois conseguiria
libertar-se dos indonésios e regressar a Lisboa. Descobriu, então,
que a Marinha lhe arquivara a existência, sem nada saber dele. Mas
também que Carmen continuava à sua espera. Agora, seguem-se os
tribunais
Plácido Júnior / VISÃO nº 451 25 Out.
2001
Depois da comissão militar no Niassa, no Norte da então província
ultramarina de Moçambique, entre 1968 e 1971, quando apertavam as
acções de guerrilha contra o domínio colonial português, a ida para
o pacífico Timor soube-lhe a um prémio numa estância de férias.
Destacado pela Armada, Fernando Duarte Silva Cavaterra era um 1.º
marinheiro feliz ao chegar a Díli, em Junho de 1972. Além do mais, a
Marinha consentira em que levasse consigo Carmen, a moça bonita com
quem se tinha casado dois meses antes. Mas o que prometia ser uma
lua-de-mel prolongada transformou-se num pesadelo que lhes tragou o
casamento e metade da vida.
Porque perdeu um barco que não sabia que ia partir, Fernando
Cavaterra andou 24 anos no fio da navalha e em bolandas no Timor
ocupado pela Indonésia de Suharto. À chegada, só encontrou uma
consolação: em casa dos pais, numa aldeia da Régua, Carmen esperara
por ele todo esse tempo. Reviu-a tão apaixonada como da primeira
vez, quando se conheceram e dançaram naquele baile em Cascais.
Após a «revolução dos cravos», em 25 de Abril de 1974, Portugal
passou a reconhecer o «direito de autodeterminação e independência
em relação a todos os territórios sob a sua administração». Pelo
menos em Timor, pensava-se, não haveria problemas. Não foi assim.
Em 11 de Agosto de 1975, a UDT (União Democrática Timorense),
liderada por João Carrascalão, desencadeou um golpe de Estado,
utilizando as armas de que se apoderou, assaltando a polícia. A 19,
a FRETILIN (Frente Revolucionária de Timor-Leste) contra-atacou e
tomou conta da situação. Com o governador português, Lemos Pires, a
tentar dirimir o conflito, temos, a 26, Fernando Cavaterra, militar
n.º 167 da Armada, rádio-telegrafista no Comando da Defesa Marítima,
em Díli, a cumprir mais uma noite de trabalho, da uma às sete da
manhã.
Terminado o serviço, dirigiu-se, na mota que utilizava, não para
a casa em que vivia com a mulher, no bairro de Lahane, a uns 3 km da
Rádio Naval, mas para a residência de um casal amigo. Adoentada,
Carmen recolhera-se ali, e Fernando Cavaterra tinha prometido ao
dono da casa que, apesar da noite em branco, o acompanharia, logo
pela manhã, num transporte de café para Ermera, na montanha.
Regressaram a Díli já de noite, pelo que ao rádio-telegrafista
apenas sobrou tempo, na casa do amigo, no bairro de Taibesse, para
comer alguma coisa, fardar-se e acelerar a sua motoreta em direcção
à Rádio Naval, onde entrava de serviço, outra vez, à uma da
madrugada. Já lá não chegou: próximo do aquartelamento da Marinha,
uma barreira de civis timorenses armados impediu-lhe a passagem. E
informou-o, em primeira mão, que as autoridades e a tropa
portuguesas tinham retirado para a ilha de Ataúro três horas antes,
às dez da noite.
O marinheiro n.º 167 ficara entregue à sua sorte, no meio de uma
guerra civil. Apenas conseguiu, duas semanas depois, embarcar Carmen
num petroleiro japonês que se ofereceu para transportar crianças,
mulheres e velhos de Díli até ao porto australiano de Darwin. Aqui
chegada, ela foi posta num avião para a capital portuguesa.
Em Junho de 1999, quando, por intermédio de Ana Gomes, a
representante de Portugal na Indonésia, finalmente saiu de
Timor-Leste, Fernando Cavaterra voltaria a sentir-se abandonado. Em
Lisboa, verificou que, apesar de nada saber dele, a Marinha
arquivara-lhe a existência há uma mão-cheia de anos atrás.
Vivo ou morto – abata-se!
Nascido por acaso em Évora há 52 anos, Fernando Cavaterra teve
uma infância e uma adolescência difíceis em Pêro Pinheiro (Sintra),
onde ainda vive o pai, na casa modesta de sempre. Logo aos 18 anos
alistou-se como voluntário na Marinha, em busca de outro futuro.
Hoje, a mesma Marinha é-lhe implacável. Recorrendo a um artigo do
Estatuto das Forças Armadas, passou-o à vida civil, inibido de
direitos e compensações, em Janeiro de 1990, perante uma «situação
de ausência superior a dois anos, sem que houvesse qualquer notícia
do militar», explica o porta-voz do Estado-Maior da Armada (EMA),
comandante Almeida Carvalho. Encurralado em Timor, como diz que
estava (ver infografia), Fernando Cavaterra não compareceu afinal ao
serviço durante 15 anos, até ser abatido ao efectivo. Mas o
porta-voz do EMA é taxativo: «A posição da Marinha é a de que não
existe nenhuma razão legal para se reconsiderar esse acto
administrativo.»
Apesar de a conhecer, o EMA passa ao lado de uma sentença de um
colectivo de juízes do Tribunal Militar da Marinha que, em Janeiro
de 1991, absolveu Fernando Cavaterra, num julgamento à revelia, do
crime de deserção. No acórdão, os magistrados afirmavam: «(...) Não
se provou que o réu tivesse tido conhecimento, por qualquer forma,
da ordem de apresentação no porto de Díli, (...) no dia 26 de Agosto
de 1975 (...).»
Explicavam os juízes não ser «inteiramente de excluir» que a
referida ordem «não tivesse chegado ao conhecimento» do
rádio-telegrafista n.º 167. Evocavam, «por um lado, o estado geral
de descontrolo da situação então vivida em Díli» e, por outro, «a
circunstância de aquela ordem haver sido divulgada apenas cerca de
meia hora antes da partida para a ilha de Ataúro».
Os magistrados também deram como certo que «seria extremamente
difícil, se não impossível, o réu deslocar-se para a mencionada ilha
posteriormente, ainda que tal pudesse ser a sua vontade (...)».
Concluíram, assim, que ficou por provar que «a não apresentação do
réu, quer nos referidos local e dia, quer posteriormente, às
autoridades militares, tenha sido voluntária ou devida a falta de
cuidado (...)».
«Nem todos os marujos sabem nadar...»
Fernando Cavaterra chegou a Portugal com a saúde de rastos. Em
dois anos, foi já operado a uma acomegália (tumor benigno que
provoca o crescimento de órgãos interiores) e a duas hérnias
inguinais, preparando-se agora para uma quarta intervenção
cirúrgica, esta às ancas. Mas não desiste de processar a Marinha por
danos morais e materiais, ser recolocado no posto que lhe compete,
reaver os ordenados não pagos e passar, com os direitos inerentes, à
reserva ou à reforma. Só que, desempregado e a viver do rendimento
mínimo garantido, ainda procura um advogado que, nessas condições,
aceite patrociná-lo.
De Díli, pelo telefone, chegam declarações de apoio de Manuel
Carrascalão, que durante quase duas décadas o acolheu em casa e o
protegeu dos indonésios, fazendo-o seu empregado. «É uma injustiça»,
diz à VISÃO o histórico dirigente timorense. «A todos os
ex-funcionários públicos daqui foi concedida pelo Estado português a
reforma e não compreendo porque a não dão ao Cavaterra.»
Resta saber o que fez o militar português para dar notícias de si
ou, mesmo, sair do Timor ocupado pela ditadura de Suharto. «Com os
indonésios a perseguirem-no e a pressionarem-no, não era nada
fácil», defende-o Manuel Carrascalão. «Nem todos os marinheiros
sabem nadar...», resume o próprio, que diz não ter conseguido furar
a intercepção do ocupante nos telefonemas que tentou fazer e nas
cartas que procurou mandar para Portugal.
Por certo não ajudou à boa convivência com os indonésios, por
exemplo, o facto de, pela calada de uma noite, ter deitado fogo a
uma guarita de soldados que impunham a sua presença à entrada da
gruta de Nossa Senhora de Fátima, em Díli. Ou, antes disso, a sua
disponibilidade para sintonizar clandestinamente a RTP Internacional
em casa de quem lho pedisse. «O Manuel Carrascalão sempre me safou»,
recorda Fernando Cavaterra. «Foi mais do que um irmão para mim.»
Em Pêro Pinheiro, entretanto, a GNR batia à porta da casa de seu
pai – durante 16 anos, religiosamente. «Vinham uma vez por ano,
sempre em Outubro ou Novembro», conta Asdrubal Cavaterra, hoje com
87 anos. «Perguntavam o que era feito do meu filho, e eu
respondia-lhes que não sabia dele, que tinha desaparecido para lá,
em Timor.»
Se a Guarda deixou de aparecer, Asdrubal também fez o luto pelo
filho. «Já o tinha dado como morto», recorda, com Fernando sentado a
seu lado. «"Morreu pela Pátria" – era o que dizia às pessoas.»
Nas mãos dos indonésios
Sozinho em Díli, nos dias de chumbo de Agosto de 1975, Fernando
Cavaterra pensou que «salvar a pele» equivalia a «alinhar na guerra
civil». Juntou-se à UDT, que «queria a independência debaixo da
bandeira portuguesa», em oposição à FRETILIN, marxista-leninista.
Confessa, também, que já antes colaborara com o partido de João
Carrascalão, ajudando na montagem do seu sistema de comunicações.
Mais tarde verificaria que a UDT era, afinal, permeável à influência
indonésia.
Conforme iam perdendo a guerra para a FRETILIN, as forças de João
Carrascalão recuavam em direcção ao Timor indonésio e, com elas,
Fernando Cavaterra. Até que houve um cerco intransponível.
O militar português e mais sete pessoas (entre elas Francisco, o
mais novo dos irmãos Carrascalão, a mulher deste e uma filha pequena
do casal) decidem fazer-se ao mar. Vão em duas frágeis barcaças,
ligadas entre si por paus de bambu, e querem chegar a Batugadé,
ainda em Timor--Leste. Ao cabo de 25 horas a remar, as correntes
levam-nos para Kalabahy, na ilha de Alor, do lado indonésio. Ironia
das ironias, dali avista-se a ilha de Ataúro – só que Fernando
Cavaterra não sabe (nem imagina) que as autoridades e a tropa
portuguesas ainda lá se encontram.
Mas estavam, embora quase esquecidas por Lisboa, que vivia no
alvoroço do PREC (Processo Revolucionário Em Curso). E só de lá
saíriam em 8 de Dezembro de 1975, o dia seguinte ao da invasão de
Timor-Leste pela Indonésia, depois de a FRETILIN, em 28 de Novembro
daquele ano, ter ingénua e unilateralmente declarado, em Díli, a
independência do território, indiferente às ameaças do poderoso
vizinho, que nunca aceitaria no poder um partido de inspiração
marxista.
Quando as corvetas João Roby e Afonso Cerqueira, pejadas de
tropas e material, se fizeram ao largo de Ataúro, rumo a Darwin, com
Díli em fundo, expelindo colunas de fumo provocadas pelos
bombardeamentos indonésios, cessava a presença da autoridade
portuguesa em Timor-Leste, que ali se mantivera em condições
humilhantes. Nessa altura, Fernando Cavaterra estava, outra vez,
junto de forças da UDT, agora em Balibó, depois de os indonésios o
terem posto na fronteira, após uma breve passagem por Atambua, onde
chegara num avião militar, vindo da ilha de Alor.
Em Balibó, o português ficou com a tarefa de montar uma rádio
partidária, mas o ataque indonésio alterou tudo. Não tardou até ser
embarcado num helicóptero militar do invasor (onde também ia, por
exemplo, Francisco Lopes da Cruz, dirigente da UDT depois
transformado em «embaixador itinerante» do regime de Suharto). E, em
vez de Díli, para onde lhe tinha sido dito que seguiria, o «heli»
aterrou em Kupang, capital do Timor indonésio.
Mordomo do general El Tari
«Os indonésios nunca me aceitaram como refugiado», conta Fernando
Cavaterra. Em Kupang, é posto a fazer a locução em português, numa
suposta «Rádio Díli», de textos propagandísticos do invasor. «Vi-me
muito apertado, perdi a vontade de viver», recorda. «Apontavam-me
pistolas à cabeça e tinham um gosto especial em pontapear-me as
canelas com aquelas botas da tropa.»
Um dia, recusou-se mesmo a continuar com a fraude radiofónica e
foi fechado numa casa, numa espécie de prisão domiciliária. Com pena
dele, um polícia consegue levá-lo, passado um mês, à presença do
governador indonésio, general El Tari.
Coube-lhe, finalmente, uma nesga de sorte. «O general disse-me
que tivesse calma, que um dia me punha em Portugal», relata. E
passou a trabalhar para o governador como mordomo, motorista,
mecânico, «pau para qualquer colher». Também visitava Manuel
Carrascalão, igualmente preso em Kupang.
Porém, em fins dos anos 70, El Tari é morto por envenenamento.
Foi um assassinato político: o general manobrava em prol de um Timor
uno e indivisível, separado da Indonésia. O rádio-telegrafista n.º
167 perde o seu protector em Kupang e tem de sair da cidade.
Sob a clandestinidade possível, começa por instalar-se em Soe, a
cerca de cem quilómetros dali, onda monta uma oficina de reparação
de rádios. Alguns meses depois, muda-se, nas mesmas circunstâncias,
para Kefamenano, perto do enclave de Oecusse. Procura, então, chegar
a Díli por mar.
De tão difícil, abandona a ideia e põe-se a caminho de Atambua.
Aqui, encontra-se, por acaso, com João Tavares, administrador de
Maliana, que conhecia de Díli, e que viria a celebrizar-se como um
dos mais ferozes líderes das milícias pró-integracionistas. Tavares
levá-lo-ia consigo e também faria dele seu mordomo e motorista.
Em Maliana, Fernando Cavaterra assinaria recibos como suposto
proprietário de uma empresa encarregada de montar o sistema local de
electricidade, quando o verdadeiro dono era João Tavares, que
adjudicara a empreitada a si próprio. A protecção tinha um
preço.
A saga de Carmen
Só nos anos 80, quando Mário Carrascalão é nomeado, pelos
indonésios, governador de Timor-Leste, Fernando Cavaterra considera
que pode voltar a Díli em segurança. Tinha outro protector, o melhor
de todos, à sua espera: Manuel Carrascalão, irmão do governador.
A partir de 1995, quando os alicerces do regime de Suharto
começam a tremer, o português consegue fazer chegar as primeiras
cartas a Lisboa, com a chancela da Diocese de Díli. A conselho de
Manuel Carrascalão, escreve para a Direcção-Geral da Administração
Pública, a Caixa Geral de Aposentações, a Presidência da República.
Todas as missivas são reenviadas por essas entidades para a Marinha,
com o resultado que se sabe.
Em 17 de Abril de 1999, já com o referendo de 30 de Agosto
seguinte à espreita, dá-se o massacre de dezenas de refugiados na
casa de Manuel Carrascalão. Fernando Cavaterra escapa por pouco às
milícias Aitarak, de Eurico Guterres. O ataque ocorreu por volta do
meio-dia, e o português tinha dali saído uns minutos antes, para
tratar de um assunto pessoal. Manuel Carrascalão também estava fora,
no aeroporto, à espera da mulher, e sabe, pelo telefone, do
assassínio do filho «Manelito».
Por cá, Carmen houve, na rádio, que entre os mortos pode estar um
português chamado Fernando Cavaterra. Num frémito indescritível,
telefona para a SIC, em busca de mais informações, e dizem--lhe que
ele afinal tinha sobrevivido. Depois, faz apelos lancinantes a
operadoras da Marconi para a porem a falar com o marido. Acabam por
conseguir, quando ele está já, juntamente com Manuel Carrascalão e a
família deste, sob a «protecção» dos indonésios, no Comando Geral da
Polícia de Díli.
«Quando ouvi a voz dele, ia desmaiando», recorda Carmen. Foi um
diálogo breve, as circunstâncias a isso obrigavam, quase como se não
tivessem passado 24 anos desde o dramático adeus de Díli.
Em 1975, Carmen chegou a Lisboa imersa em hemorragias, que os
médicos atribuíram ao aborto de uma gravidez que ela não tinha,
ainda, detectado. Antes, no caminho para o petroleiro que a levou de
Díli para Darwin, diz que foi agredida e queimada no braço esquerdo,
com pontas de cigarro, por elementos da FRETILIN.
Depois de um internamento hospitalar em Lisboa, recolheu-se em
casa dos pais, na aldeia do Lugar da Estrada, na Régua – até hoje.
Logo em 1976, receberia uma carta da Marinha, anunciando-lhe que
perdia todas as regalias a que tivera direito, incluindo as de
saúde.
«Apelei para todo o lado, não houve nada que não tivesse feito»,
conta Carmen, 50 anos, sobre a sua saga em busca do marido. Só
cessou a procura há seis anos, quando lhe foi detectado um cancro
(com que ainda se debate). Dois anos depois, resolveu queimar
«quilos de cartas e telegramas» que mandou para Timor e foram
devolvidos ao remetente.
Se perdeu a esperança, nunca ninguém lhe disse que o marido podia
ter morrido. «Pensei em tudo e mais alguma coisa», admite.
«Sobretudo em que ele não queria voltar.»
Regressaria, porém, nesse Junho de 1999, depois do massacre na
casa de Manuel Carrascalão. «O Fernando não trouxe saúde, nem
dinheiro, mas a minha paixão continua a mesma», frisa Carmen.
«Naqueles anos todos, nunca fui à festa da aldeia, faltava-me a
alegria. Só lá fui quando ele voltou – e com ele.»
Ali, no Douro vinhateiro, nem tudo a guerra e o tempo
levaram.